Quem sou eu

Minha foto
Piraí do Sul, Paraná, Brazil

Total de visualizações de página

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Resenha: A Soberania no Mundo Moderno


INTRODUÇÃO
              
               Luigi Ferrajoli é um dos mais respeitados juristas da Itália contemporânea. Na obra “A Soberania no Mundo Moderno”, ele discute a dissolução do velho princípio da soberania a partir do desenvolvimento do estado de direito no interior dos ordenamentos nacionais, tocando em temas como o surgimento da ONU, a globalização e a integração econômica, política e cultural que dissolveram o velho princípio da soberania. O autor trabalha com três hipóteses relativas à origem da soberania, sendo a primeira a jusnaturalista, com duas dimensões: a interna e a externa. Segundo os historiadores a primeira teoria foi a externa, datada junto com o surgimento do direito internacional moderno. Francisco de Vitoria teve um papel fundamental na fundação do direito internacional. Ele contestou todos os títulos de legitimação dos espanhóis em sustento da conquista do Novo Mundo.  Para contrapor a esses títulos ilegítimos, reelabora toda a velha doutrina e lança as bases do direito internacional moderno, juntamente com o conceito moderno de Estado como sujeito soberano.

DESENVOLVIMENTO

               A origem jusnaturalista da dimensão de soberania externa remonta ao pensamento de Francisco de Vitoria, depois a Gabriel Vasquez de Menchaca, a Baltazar de Ayala e a Francisco Suarez, que anteciparam a reflexão de Hugo Grotius. Essa origem tem como objetivo oferecer um fundamento jurídico para a conquista do Novo Mundo.
               Vitoria contestou, em suas Preleções, todos os títulos de legitimação originalmente feitos pelos espanhóis, dentre eles: o direito de descobrimento, a ideia de soberania do Império e da Igreja, a infidelidade e o comportamento pecaminoso dos índios, sua submissão voluntária e finalmente à concessão divina dada aos espanhóis para tal dominação.
               A esses títulos ilegítimos, Vitória contrapõe outros, reelaborando velhas doutrinas, dando fundamento ao direito internacional moderno e ao conceito moderno de Estado soberano. São três esses títulos:

a) “A configuração da ordem mundial como sociedade natural de Estados soberanos”, rechaçado a idéia de mundo submetido ao império e ao papa. Cada Estado deve produzir leis que devem ser cumpridas por todos, inclusive pelos reis e os legisladores, afinal os governantes recebem sua autoridade da república e devem usá-la em prol dela. O mundo inteiro é um tipo de república e por isso deve fazer leis justas para todos, e nenhum país tem o direito de desrespeitá-las.

b) “A teorização de uma série de direitos naturais dos povos e dos Estados”. São eles o direito de se comunicar, de viajar, de permanecer, de comércio, de ocupação, de migrar. A esses são anexados mais quatro direitos divinos: direito de evangelizar, dever da censura fraternal dos bárbaros, dever de proteger os convertidos de seus antigos caciques, dever de substituir os caciques por líderes cristãos caso haja conversão da maioria dos índios. E o mais importante deles é o direito à defesa incondicional dos espanhóis, mesmo que para isso seja necessário massacrar suas cidades e subjugá-los.  

c) “A reformulação da doutrina cristã da ‘guerra justa’, redefinida como sanção jurídica às ofensas sofridas”. “A guerra é justa e necessária [...] porque os Estados estão submetidos ao direito das gentes e, na falta de um tribunal superior, seus argumentos não podem ser impostos senão com a guerra”.
            Dessas teorizações advêm três consequências, sendo elas: a guerra pode ser feita legalmente pelos Estados; o príncipe que entra em guerra é um juiz competente para conhecer as pretensões que levam à guerra e, por fim, a violência nessa guerra deve ser a mínima necessária e os inimigos são submetidos ao direito.
  As três doutrinas de Vitoria – a ideia de uma sociedade de Estados igualmente soberanos e sujeitos ao Direito; a afirmação de uma série de direitos naturais dos Estados e a teoria da guerra justa – são as bases da doutrina da soberania estatal externa e, da teoria internacionalista moderna como um todo. O que explica a falência das idéias de Vitoria são os contrastes dentro das suas doutrinas.
              É no século XVII que a teoria Vitoriana entra em crise definitivamente. Com a consolidação dos Estados nacionais e sua autonomização, todo e qualquer limite à soberania estatal desmorona. Esse processo envolve os dois tipos de soberania: a interna e a externa. Foi com a filosofia política do século XVII que o liame da soberania foi cindido.
Grotius torna o “direito das gentes” autônomo em relação ao jusnaturalismo, “definindo-o que por vontade de todas ou de muitas gentes assume a força de obrigação”. O direito deriva da vontade dos sujeitos mais fortes internacionalmente.
Hobbes remonta a primeira formulação das ideias do Estado-pessoa, legitimando o atributo da soberania. O que agrada ao príncipe tem força de lei, o príncipe tem o monopólio da produção jurídica e da força coercitiva. Isso se reflete também na soberania externa, porém como todos os outros Estados também são soberanos externamente, cria-se um estado de natureza hobbesiano entre estes Estados (efetivamente e não hipoteticamente).
Locke também compartilha da mesma visão de Hobbes da sociedade internacional. A única diferença (tanto em Hobbes como em Locke) é que o estado de natureza não é composto mais por “homens comuns”, mas por “homens artificiais” (Estados).
“Ao mesmo tempo, seculariza-se, por obra da filosofia jusnaturalista do século XVII, o paradigma vitoriano de legitimação das conquistas coloniais”. Pelo fato dessas populações “bárbaras” viverem num “estado de natureza” que deve obrigatoriamente ser superado pelo “estado civil” (que será trazido pelos colonizadores).
Tanto Hobbes como Locke retratam os indígenas no estado de natureza. Para Locke, as terras indígenas infinitas e incultas podem ser apropriadas pelos colonizadores “sem prejuízos de outros”.
A oposição entre estado civil e estado de natureza origina duas histórias paralelas e opostas da soberania: “a de uma progressiva limitação interna da soberania, no plano do direito estatal, e a de uma progressiva absolutização externa da soberania, no plano do direito internacional”.
O estado de natureza dos Estados modernos atinge seu auge no período que vai da metade do séc. XIX à metade do séc. XX. As soberanias externas e internas seguem caminhos inversos: “aquela se limita tanto quanto esta se libera, em correspondência com a dupla face do Estado, fator de paz internamente e de guerra externamente”.
            Sendo o Estado soberano internamente, devido à não existência de fontes normativas a ele superiores, é também soberano externamente. Porém, externamente encontra a soberania dos outros Estados. Isso produz uma liberdade selvagem, uma guerra de Leviatãs. Dessa forma é que a sociedade internacional dos Estados vem a configurar-se. A diferença do estado de natureza original é que agora essa cidade selvagem é composta por homens artificiais, os Estados.
Como resultado temos um Estado soberano fundado sobre duas posições: negação do estado de natureza enquanto estado civil, a oposição entre civilidade e incivilidade; e, sobre a afirmação de um estado de natureza entre Estados soberanos, virtualmente em estado de guerra entre si, mas também sujeitos a um direito-dever de civilizar o resto do mundo.
A oposição entre estado civil e estado de natureza dá origem a duas histórias da soberania: a de uma progressiva limitação interna e a de uma progressiva absolutização externa no plano do direito internacional.
            O auge da comunidade selvagem dos Estados é da metade do século XIX à metade do século XX, esses cem anos são também os da construção, na Europa, do Estado de Direito e da democracia.
            Com as mudanças nos Estados, revoluções e sucessivas cartas constitucionais, muda a forma do Estado e também o princípio da soberania interna.
No final do século XIX constrói-se a idéia de que a soberania não está nem no povo, nem no rei, mas sim no próprio Estado. Dessa forma, confere-se um caráter científico-objetivo às disciplinas juspublicistas e atribui-se à disciplina do direito público uma função de unificação nacional e de reforço nas frágeis identidades nacionais.
Um resíduo desse absolutismo permanece ainda no séc. XIX, porém logo se esvanece com a rigidez constitucional do séc. XX, com normas superiores às ordinárias e com o direito positivo. Essa constituição subordina a todos, inclusive ao legislativo. “A garantia dos direitos de todos – até mesmo contra a maioria – tornou-se o traço característico do estado democrático de direito”.
 No caso da soberania externa temos um percurso diferente. Nos novos Estados nacionais, ela alcança formas desenfreadas e ilimitadas – conquistas coloniais, guerras – muito mais parecida com a liberdade selvagem nos moldes hobbesianos.
“O estado de direito, internamente, e o estado absoluto, externamente, crescem juntos como os dois lados da mesma moeda. Quanto mais se limita – e, através de seus próprios limites, se autolegitima – a soberania interna, tanto mais se absolutiza e se legitima, em relação a outros Estados e sobretudo ao mundo ‘incivil’, a soberania externa”.A cidadania internamente representa a base da igualdade, e externamente age como privilégio e como discriminação para os não-cidadãos. “O Estado configura-se como um sistema jurídico fechado e auto-suficiente. O monopólio exclusivo da força por ele alcançado é afirmado no que diz respeito não apenas ao seu interior [...], mas também ao seu exterior [...]”. O Estado torna-se, então, autônomo no cenário internacional. Disto se originam duas conseqüências: a) Negação do próprio direito internacional. b) Espírito de potência e vocação expansionista e destrutiva (alimentando o paradigma da soberania estatal).
Entre o final do século XIX e início do XX, o estado de direito cresce internamente e o absoluto externamente, num movimento simultâneo e paradoxal.
O paradigma da soberania externa atinge seu auge e seu declínio na primeira metade do séc. XX, no período das duas guerras (1914-1945). Seu fim é dado pela criação da ONU em 1945 e pela Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948.
Tais documentos tiram o mundo, ao menos no plano normativo, do estado de natureza e o levam para o estado civil. A soberania deixa de ser livre e se subordina a duas normas fundamentais:
a) Imperativo da paz.
b) Tutela dos direitos humanos.
   A carta da ONU equivale a um contrato social internacional, um ordenamento jurídico supra-estatal.
               Nesse novo ordenamento não apenas os Estados, mas os indivíduos e os povos passam a ser sujeitos de direito internacional. Porém esse “ordenamento internacional hodierno é ineficaz pelo fato de que os seus órgãos não mais equivalem a um ‘terceiro ausente’, mas sim a um ‘terceiro impotente”.
               “A história jurídica da soberania é a história de uma antinomia entre dois termos – direito e soberania -, logicamente incompatíveis e historicamente em luta entre si. [...] Essa antinomia [...] resolveu-se no plano do direito interno com o nascimento do estado constitucional de direito, em virtude do qual o direito regula a si próprio [...]”.
               “Repensar o Estado em suas relações externas à luz do atual direito internacional não é diferente de pensar o Estado em sua dimensão interna à luz do direito constitucional. Isso quer dizer analisar as condutas dos Estados em suas relações entre si e com seus cidadãos [(guerras, massacres, torturas, etc.)], interpretando-as [...] como violações jurídicas reconhecíveis em relação à obrigação de ser do direito internacional vigente, tal como ele já está vergado em seus princípios fundamentais”.
               O aumento do poderio bélico, a destruição da natureza, a desigualdade e a miséria, etc., tornam o equilíbrio internacional da paz cada vez mais distante de ser alcançado. Por outro lado o fim dos blocos e a interdependência (cultural, econômica, política, ecológica) transformam o mundo numa aldeia global. A rapidez das comunicações também não deixa nenhuma parte do mundo alienada. Por isso que hoje se torna cada vez mais possível uma integração mundial baseada no direito.
               A soberania externa sempre teve como justificativa a proteção contra inimigos externos. Porém a decadência de blocos contrapostos, a intensificação da interdependência e a não obediência às diretrizes da ONU (paz, igualdade, desenvolvimento, direitos universais dos homens e dos povos) “estão produzindo uma crise de legitimação desse sistema de soberanias desiguais e de relações cada vez mais assimétricas entre países ricos e países pobres, em que a comunidade internacional se transformou: um sistema que não parece ser tolerável, em longo prazo, pelos próprios ordenamentos políticos dos países avançados, que baseiam sua identidade e legitimação democrática justamente naquelas mesmas promessas e no seu universalismo”. “O Estado nacional como sujeito soberano está hoje numa crise que vem tanto de cima quando de baixo. De cima, por causa da transferência maciça para sedes supra-estatais ou extra-estatais [...] de grande parte de suas funções – defesa militar, controle da economia, política monetária, combate à grande criminalidade [...] De baixo, por causa dos impulsos centrífugos e dos processos de desagregação interna que vêm sendo engatilhados, de forma muitas vezes violenta, pelos próprios desenvolvimentos da comunicação internacional, e que tornam sempre mais difícil e precário o cumprimento das outras duas grandes funções [...]: a da unificação nacional e a da pacificação interna”.
               Porém o paradigma do velho Estado soberano já não serve mais porque o Estado “é demasiado grande para as coisas pequenas e demasiado pequeno para as coisas grandes”.


CONCLUSÃO

Com a crescente interdependência econômica, política, ecológica, cultural, que transformou o mundo, vivemos hoje em uma aldeia global repleta de desequilíbrios. Graças à rapidez das comunicações, temos acesso à informação de todos os lugares do globo, nada nos é estranho.
            A soma desses fatores torna mais urgente e mais concreta do que nunca, a hipótese de uma integração internacional baseada no direito.
“Naturalmente, essa crise do Estado é uma crise de época, com consequências imprevisíveis. Mas acreditamos que cabe à cultura jurídica e política apoiar-se naquela “razão artificial” que é o direito, e que já no passado moldou o Estado em suas relações internas, para indicar as formas e os percursos: os quais passam, evidentemente, através da superação da própria forma do Estado nacional e através da reconstrução do direito internacional, fundamentado não mais sobre a soberania dos Estados, mas desta vez sobre as autonomias dos povos.”
      O paradigma deve ser aquele do estado constitucional de direito, que nos foi dado pelas experiências das democracias modernas, ou seja, sujeição às leis dos organismos da ONU, de sua reforma em sentido democrático e representativo, da instauração de garantias que tornem efetivos o princípio da paz e os direitos fundamentais.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FERRAJOLI, Luigi. A Soberania no Mundo Moderno: nascimento e crise do Estado nacional. 2° ed. São Paulo. Martins Fontes, 2007.  
DALLARI, Dalmo de Abreu. O futuro do Estado. São Paulo: Saraiva, 2001.

(Daniela Costa Queiróz)